nobody is pure
countercanon series
2023
ninguém é puro (nobody is pure)
countercanon series
2023
transfixed
ink on paper
2023
Em algum momento próximo o meu trabalho será engolido por algum museu neoliberal e a ousadia de tirar meus desenhos do papel para gravá-los na pele deixará de ser ARTE para virar CULTURA. A transição do ruído que a arte provoca para o silêncio dos acervos de memória seletiva dos museus é uma morte simbólica: a arte arrefece e dela nasce o arquivo.
Antes disso - como depoimento de um artista que fala de Politica Queer desde 2010 - quero deixar claro que coleto imagens de desenhos tatuados desde o ano de 2013 e que hoje, 2023, tenho centenas de desenhos espalhados pelos corpos; sobretudo corpos de homens gays, e disso nasce uma aliança estética/política com essas pessoas que hoje transitam em mais de 30 países, nas Américas, África, Ásia, Europa e Oceania. É um novo Triângulo Rosa, que nos identifica e nos reconhece em corpos sem rosto tantas vezes retratados na cultura gay.
Ter o trabalho presente na carne viva e tantas pessoas faz de mim um artista vivo em muitos sentidos. A completa ausência do meu trabalho nas instituições de memória heterossexual é o que legitima a estranheza necessária para tornar um trabalho Queer. O fracasso é uma dimensão essencial para a arte Queer porque todo sujeito LGBT+ nasce sobre um projeto heterossexual fracassado. O preço que pagamos por não sermos sujeitos previsíveis é alto. Uma sociedade heterossexual dificilmente consegue roteirizar no capitalismo uma vida dissidente que não seja pela violência, apagamento ou epistemicídio.
Meu trabalho é demasiadamente gay para estar nos museus? Eu estou demasiadamente vivo e saudável para estar nos museus? O artista gay que afirma a si e o sexo precisa ter tido uma morte exemplarmente trágica para entrar para a cultura de um país?
Em momento algum diminuí o tom do discurso ou edulcorei as estéticas.
Eu consegui estabelecer mais de 10 anos de uma carreira sólida nas artes visuais brasileiras falando de Política Queer sem precisar caber em nenhuma política neoliberal de cultura.
Meu trabalho pode estar próximo de ser cooptado. O artista não.
FUNK RAVE: uma análise Queer.
“Mulheres precisam estar nuas para estarem nos clipes musicais enquanto 99% dos caras estão vestidos?” - disparou o grupo de arte feminista Guerrilla Girls em 2014, em referência aos cartazes produzidos por elas mesmas sobre a diferença entre o grande número de figuras de mulheres nuas em pinturas e esculturas e o número bastante inferior de mulheres artistas nos acervos nos maiores museus do mundo. Desde meados dos anos 1980, o grupo de artistas anônimas adota a máscara de um gorila em cartazes e ações para denunciar os abismos de gênero no mundo das artes visuais. Nessa estrutura cultural sobre as imagens e as relações de poder - onde mulheres refletem o desejo de sexo e servidão do patriarcado - homens são sempre sujeitos, nunca objetos. A situação parece ser bastante diferente na Tijuquinha, zona oeste do Rio de Janeiro, onde a estrela pop Anitta gravou seu mais recente videoclip ‘Funk Rave’ e causou comoção aproximando progressistas e conservadores com cenas quase ousadas que vazaram durante as gravações do clipe, em janeiro de 2023.
Um conjuntinho preto e branco em referência à marca Bad Boy e óculos espelhados estilo Juliet na cabeça, um par de chinelos Kenner que se alterna com tamancas coloridas nos pés, shortinho jeans rasgado e calcinha asa-delta mostrando bem a bunda elencam o figurino da cantora; uma profusão de homens descamisados com o mesmo corte de cabelo do Ronaldo Fenômeno na copa de 2002 se destacam na figuração, como o avesso de um harém. A arquitetura de improviso, o chão de terra batida e a poeira do campinho de futebol da ‘quebrada’, a viela e o beco compõem o cenário onde a periferia é também personagem. Uma galinha que corre solta e uma roda de samba lembram as primeiras cenas vertiginosas do filme Cidade de Deus, de 2002, e uma série de referências visuais do começo dos anos 2000 parecem querer passar a limpo um passado não muito distante onde a objetificação do corpo da mulher nas artes, TV, cinema, publicidade, música, parecia natural e imutável; objetificação reiterada tantas vezes no audiovisual do funk brasileiro e também no mundo de todas as imagens produzidas pela cultura heterossexual hegemônica. Anitta parece querer inverter a polaridade de poder nas relações de gênero e reinventar o erotismo latino-americano partindo de uma favela carioca. A artista se apresenta como o bendito fruto entre os homens e se abre como uma flor de planta carnívora e que engole o sexo, os machos e toda realidade à sua volta. No seu novo vídeo, Anitta usa referências vivas na memória e nos apresenta uma pequena série de novas possibilidades do olhar.
Male Gaze - olhar masculino na tradução literal do inglês - é a expressão feminista da segunda metade do século XX usada para definir a dominação masculina heterossexual na produção imagens e narrativas; define o domínio do olhar masculino sobre todos os outros olhares. O ‘olhar masculino heterossexual’ é o que se convencionou como ‘olhar universal’, como forma de manutenção de poder. Nos últimos séculos, esse suposto ‘olhar universal’ do macho heterossexual é o ponto de vista da imensa maioria das criações que consideramos arte. Na verdade, o que considera História da Arte não passa de uma visão parcial e editada sobre as criações dos mais diversos sujeitos e seus olhares. O que está dentro dos museus - incluindo as mais diversas representações de mulheres nuas - é reflexo direto do olhar da burguesia branca, eurocêntrica e heterossexual sobre a realidade. Anitta se vale de um arsenal de referências do feminino periférico e nos apresenta simbolicamente um espelho: que reflete a erotização relacionada ao corpo feminino e ao mesmo tempo a inverte em seu reflexo.
O desejo sexual partindo de uma mulher poderosa no território mainstream da música ainda causa um certo estranhamento capaz de unir jacobinos e girondinos no Brasil de 2023. Anitta ousa pela fartura de pele reluzindo em sua novíssima produção, escancarando os pudores em torno do desejo de uma mulher emancipada sobre o corpo do homem. A cultura do olhar masculino heterossexual minimiza o caráter universal de olhares femininos e LGBT+ sobre o sexo e os exibe como apêndices da cultura dominante, quando não os invisibiliza. O sexo do ponto de vista da mulher heterossexual, a Arte Queer e o homoerotismo recorrentemente despem o corpo do homem de roupas e de poder, colocando a nudez masculina e toda sua fragilidade no centro do olhar, lugar historicamente relacionado ao corpo feminino despido. Despir o homem é também ressignificá-lo, é também mostrar o homem a si mesmo e aos outros. A objetificação do macho dominante pelo sexo nos territórios da cultura heterossexual ainda causa embaraço - dificilmente veremos de homens nus em quantidade nas paredes dos museus - enquanto a nudez da mulher é naturalizada como extensão da principal função do corpo feminino na cultura machista: servir. Na favela feérica de Funk Rave, a cantora encarna a figura da Boss Bitch e os homens estão dispostos a servi-la de todas as formas, Anitta ostenta uma hipnótica catarse para mulheres heterossexuais e homens gays.
O espelho refletido de Anitta apresenta a realidade e a inverte. Ecoa a estética da periferia dos anos 2000, exibe e inverte a favela, remói o sujeito homem, desloca e substitui o objeto de desejo, repercute a coisificação do corpo preto, anuncia e inverte o sexo, aponta e inverte o poder, espelha e inverte a mulher, noticia e inverte a cantora pop.
Assim como Vênus - tantas vezes representada nua na história da arte - Anitta tem um espelho nas mãos. Há um mundo invertido do outro lado do espelho e o reflexo é apenas sua superfície.
new idol/red calf
watercolor on paper
2023
sunburn
watercolor on cotton paper
2023
penetrable
ink on paper
2023
tank top for sunny days
watercolor on cotton paper
2023
guide
watercolor on cotton paper
2023
penumbra/new papers
oil on cotton paper
2023
emerging
ink on paper
2023